segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Hip Hop Cearense faz 20 Anos

Trajetória

Caldeirão de ideias

O desenvolvimento da cultura hip hop no Ceará viu o que era festa se tornar efetivamente organização, ação pensada, intervenção criativa, ou simplesmente "movimento". Assim, delineia formas específicas de arte, compreensões de sociedade, de política e de mundo

Francisco Ceno
especial para O POVO

03 Out 2009 - 17h29min

Foto: Igor de Melo
Muito se tem dito sobre o que tenho chamado de ``novos movimentos juvenis`` e sobre suas constituições, no entanto, de um modo geral, pouco se considera suas historicidades nesse parlatório, ou, quando muito, se busca uma visão geral de suas origens, uma pretensa generalidade, deixando de lado os aspectos de apropriação, criação e recriação destes jovens em suas intervenções de ``arte-vida``.

Sobre o hip hop, em moda na mídia e na academia, bem como assediado por partidos (sobretudo de ``esquerda``) e até por instituições, esse processo é visível e exponencial destas trocas simbólicas estabelecidas entre jovens rebeldes (ou deveria dizer politicamente colocados?) e sociedade de um modo mais geral. Mas, vejamos como a história pode nos ajudar a pensar estes jovens, sua ação e intervenção social e histórica...

No início dos anos 1980, se instaura em Fortaleza, este importante movimento cultural juvenil contemporâneo, no mesmo momento em que se faz em outras cidades como São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro (algumas leituras apressadas colocam este chegando em São Paulo e sendo ``distribuído`` para o ``resto`` do País!). Tratava-se do ``movimento`` hip hop, que aportou na cidade aproximadamente entre os anos de 1982-1984. Entende-se por movimento hip hop o todo orgânico, articulado e dirigido, composto por três manifestações: o rap (canto falado); o break (dança) e o grafite, embora mais recentemente os próprios membros do movimento tenham colocado a existência de quatro elementos, alçando o DJ (um de seus sujeitos) a esta condição.

No início, a manifestação (o mesmo ocorrera anos antes, em fins dos 1970, com os punks em nossa cidade) se restringia à musicalidade e aos bailes gerados para uma vivência coletiva dessas sonoridades expressas, de um modo geral, por bandas oriundas de outros países e depois por bandas de outros Estados do País.

Em torno dessas musicalidades paulatinamente surgiram identificações, identidades, que se constituíram o cerne das articulações que redundaram na criação dos referidos movimentos. Em outras palavras, o que era festa se tornou efetivamente organização, ação pensada, intervenção criativa, ou como eles consideram, simplesmente ``movimento``.

Surgidos ou recriados em Fortaleza (alguns autores se referem isso como práticas de hibridação ou tradução), em complexos processos, múltiplos, paulatinos e simultâneos, em lógicas próprias de constante eletividade, subjetivação e significação; gerou-se o movimento hip hop, que tem por base musical o rap, ou canto falado. Soma-se uma dança a ele associado desde seu princípio e com caráter mais articulado & o break, e, uma expressão plástica & o grafite. Ainda assim, a manifestação musical parece estar por trás destas expressões lhes dando substantivação. Este processo se ampliou para o uso de suas roupas, dos adereços, na criação de uma linguagem própria e da mídia que pratica(va)m (zines, meios virtuais, muros, etc.), dos espaços que praticam, do mundo que fazem acontecer...

Desta forma, a musicalidade gerou em práticas cotidianas novos significados para o que se convencionava como hip hop. Constituía-se sob estas práticas formas inusitadas de vivência do que eram, baseadas no que desejavam.

O movimento passou então, como resultado de suas práticas culturais e políticas, a travar contato com partidos, sindicatos, grupos políticos organizados, universidades, associações e na mesma medida em que estes contatos se davam, delineavam-se suas formas específicas de arte, sua compreensão de sociedade, de política, de mundo.

Parte das informações deste complexo processo eram oriundas de suas manifestações musicais, em que as letras se encarregavam de transmitir discursos, lógicas de orientação, ideias, críticas, enfim uma concepção de mundo própria e baseada em um instrumental teórico de uma concepção utópica: o marxismo (de onde se explica a aproximação e incorporação de aspectos do universo político).

Uma outra parte era oriunda e se orientava por intermédio de um senso estético, afetivo e eletivo que se construía em práticas na cidade de Fortaleza, quando se enveredavam pelas inúmeras trilhas que se abriam na medida em que procuravam seus próprios espaços, entendido aqui como sugere certo autor, como sendo o lugar praticado, (os shows, as apresentações, bares em que pudessem escutar sua música predileta, pequenos clubes onde essa música propiciasse a dança e o encontro; e depois em manifestações políticas em que a livre manifestação pudesse ser expressa).

Esse verdadeiro caldeirão de ideias, práticas, gostos comuns, eletividades afetivas, participação política, reivindicações de direitos, manifestação de desejos, de críticas sociais e práxis alternativas, se constituíram no cerne de suas práticas e depois de suas memórias, e pode nos orientar na compreensão dos ``novos movimentos juvenis``, que em Fortaleza, se constituíram como movimentos sociais (como dois dos mais importantes se consideram o MH2O e o MCR) e com uma forte intervenção política, articulada em torno destas instituições do hip hop.

Por fim, é interessante lembrar que este perfil de movimento hip hop, proposto pelos jovens do Ceará, não é comum em todo o Brasil, antes existindo uma heterogeneidade que os colocam em um campo de disputas, no qual dificilmente se poderá prever o que resultará. Entre o apelo do mercado, a sedução da mídia, dos partidos, e suas concepções de cultura, liberdade, mudança, de hip hop militante x hip hop comercial se fazem as trilhas de seus movimentos...

>>FRANCISCO JOSÉ GOMES DAMASCENO é historiador, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisa em História e Culturas (DÍCTIS/CNPq/MAHIS) e do mestrado em História e Culturas e do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

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